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Teça comigo uma trama que ninguém desvende, uma via de fatos só nossos, plena de águas e terras - mas nada de céu.





CRESCENTE CONDIÇÃO


Na sexta-feira, 23 de novembro, pouco depois do meio-dia, uma das minhas vizinhas recebeu um telefonema do tipo que já se tornou prática comum e cada vez mais usada por facínoras, aproveitando-se de facilidades da tecnologia, do descuido ou descaso de autoridades (note que eu não disse das autoridades – generalizando), da pressa cotidiana que atordoa as pessoas, deixando-as cada vez mais mentalmente anestesiadas, psíquicamente semi-inertes, ou seja, aproveitando-se do socorro ou da brecha de um perverso anonimato via telefone, via contas bancárias cheias de nuanças para não serem detectadas, enfim, um telefonema no qual se ouvia a voz de sua filha, professora, que já havia saído para lecionar na parte da tarde, a voz dela, chorosa, dizendo que tinha sido seqüestrada, e coisas assim desconexas e apavorantes. Uma situação extrema para a lucidez, fortes contrações dos músculos cardíacos, alteração imediata da pressão arterial e do psiquismo.

Ao sair do apartamento, apavorada, descalça, encontrou-se com o síndico, que chegava da rua, e que a levou à escola da filha, de onde iriam à polícia.

A exigência era a clássica: dinheiro. Seria. Acontece que, após ouvir “Mãe, tô aqui, na mão dum seqüestrador. Me acode, mãe, me acode !”, ela desligou. O telefone tornou a soar, mas ela não atendeu. Temeridade dela não atender, já que não falara uma só palavra com os foras-da-lei ? Vejamos.

Eis que a Psicanálise sabe que a mente pode, em função de algum trauma, anuviar-se total ou parcialmente; pode fugir momentâneamente, por longo período (dias, semanas, meses, anos) ou em definitivo. E assim é que muitos milhares de anos falam em nós, com o nome de instinto de conservação, falam de tal forma que ela, a minha vizinha, não percebeu não ser de sua filha a voz clamando por socorro, lá do lado outro de um telefone do qual só mesmo o diabo (a empresa de telefonia) saberia qual é - ele, o Belzebu eletronizado e entronizado. É de se lembrar que, sem água ou telefone, o Mundo não gira.

Indo à escola onde a filha leciona, ela não havia chegado; mas meia-hora depois lá estava: sem saber de seqüestro algum tentado sobre a sua pessoa. Ao saber disso quando cheguei à minha casa, ponderei que aquilo fôra tramado por quem, por um motivo qualquer, por um acaso, soubera de horários e, mesmo, da estável condição financeira delas. Ou não. Mas como se sabe que de dentro das prisões são dadas ordens para isso e aquilo, que suas patas são bastante largas para alcançar pessoas em quase todos os lugares, até quando o que restou desta Sociedade vai sair ou ficar em casa sem um peso tal a corroer-lhe os dias?


Ambas estão bem, mas nem sempre acaba assim tal situação.

DMC
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foto: DMC. Bolsa artesanal feita pela Sra. Marli (Buritis, Belo Horizonte)

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