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Mostrando postagens com o rótulo Fernando Botero
FERNANDO BOTERO Pois o mundo é roda viva, e enquanto fatos apenas ameaçam serem fatos, uma moça deita-se com um livro, e aborda com ele uma dúvida, uma quase certeza, uma certeza, porque a moça, de dentro e do alto da sua monumental solidão, quer mais do que apenas pentear cabelos, muito mais do que somente beliscar o pão que sobre a mesa sorri para ela, quer mais do que perceber que o vizinho deu um tiro pela culatra, que os documentos não ficaram prontos, que a correspondência está atrasada, ora, a moça não quer, de jeito nenhum, ficar nua impunemente. É isso: o natural parece estar cada vez mais distante, e assim ela revira os poros e os olhos do livro, à procura dos próprios olhos, já quase tão descrente e demente quanto o próprio mundo lá fora, que o seu mundo começa nalgum lugar ainda indefinido, ainda sem encontro marcado com o plantador. Texto: Darlan M Cunha Arte: Fernando Botero
FERNANDO BOTERO (Colômbia) A BAILARINA, MINHA VIZINHA Quando ela entrou pela minha porta, tinha um desvairado semblante, algo de uma assassina em fuga, algo de devedor contumaz, algo de alguém cuja sombra lhe é só incômodo, porque foi assim que tranpôs a minha porta: sem prévio aviso, como aquele aviso que nos mandam quando vão nos despedir da beleza que é o nosso emprego, ou seja, entrando sem gritar e sem balbuciar, mas no seu olhar estava toda a enciclopédia de que eu necessitava para traduzir-lhe as nuvens carregadas. Sentou-se frente a mim, dando um leve peteleco na cesta de vime das frutas, levantou-se, foi à geladeira (para que servem as amizades reais ?), de onde trouxe um copo de tinto seco, e ainda de pé disse-me estar precisando de mim, com urgência e sob sigilo. Quase fingi que não cri, quase ri, mas sou elegante, e prezo as reais amizades, porque são poucas. Levantei-me também, e fui à geladeira, após o que ouvi-lhe o arrazoado: uma sequência de ru
FERNANDO BOTERO (Colômbia) ANIVERSÁRIO DO TÍMIDO O tímido é trabalhador de fazer boa construção ao bordejar a sintaxe do amor como se o abraçasse uma jibóia, e assim vai bordejando o amor como quem vai para longe ou como quem vem de longe, o tímido canta lígia e carolina, solfeja por ana e por outras, e se esborracha na rua ou na praça onde a banda apresenta-se à cidade submersa, ou imersa em sonhos (sempre legítimos são eles). No bojo da cidade vai o trem, o subúrbio é flecha longa, e o tímido tem uma namorada lá, e noutros lugares distantes, de onde tira tijolos para a construção do retrato em preto e branco de todo cotidiano cheio de sal e sol, de carne de sol na feira, porque a cidade tem de tudo o que os introvertidos e os extrovertidos necessitam para as fissuras de suas armaduras, e não há nada de paradoxal em sentir o que não se vê, e assim é que o tímido vê o mundo, mas de outro modo
FERNANDO BOTERO (Colômbia) (A)TEMPORAL No seu tempo havia tudo do seu tempo, de outros tempos também havia, mas disso poucos tinham consciência, porque, no seu tempo, a terceira pessoa do pretérito perfeito do indicativo do verbo passar tinha uma conotação diferente da de hoje, aliás, este verbo já não existe, isso porque, hoje, de nada mais se diz que "passou", justamente porque passa tão depressa que ninguém percebe; de nada se tem saudade, lembrança nenhuma, esta é uma Era de solidão, de urros e mur®os, de membros cuja paridade é a da ruindade extrema, do mais exacerbado egoísmo, que o mundo mudou de fato para melhor e para pior, no qual episódios podem ser encomendados com qualquer antecedência, principalmente se urgente for a encomenda, o pedido sai no mesmo instante, e logo estarás com a arma do teu premeditado crimezinho de pulha, com a tua pífia organicidade dando peidos, a pressão alterada por tanta agonia à espera da felicidade de cravar no Outro o que ele mer