Pular para o conteúdo principal
POLA OLOIXARAC


Sua escolha de carreira e seu caráter retraído não fomentavam as relações com garotas; na faculdade só tinha conhecido duas, e não podia assegurar que reunissem méritos suficientes para ganhar a denominação "garotas"; tinham o estilo de baixinha amorfa que depois herdaria sua filha. Logo se tornaria evidente que o destino e a opção intelectual tinham feito de Rodolfo um elemento forçosamente fiel, monogâmico e heterossexual. Era natural, então, que, assim que a Providência o aproximasse de uma mulher (uma pertencente ao conjunto "garotas"), Rodolfo se aferrasse a ela como certos moluscos nadadores viajam pelo oceano, até que cravam seu apêndice muscular no sedimento como um machado, cuja concha ou manto tem a faculdade de segregar camadas de cálcio ao redor da película mucosa que o lubrifica; ao fim de um tempo esta se rompe e o molusco volta a ficar à deriva, que varia entre o oceano e a morte.

Encontrou-a caminhando pela avenida Corrientes. Era uma baixinha de cabelo escuro e cacharrel justa, olhos pretos pintados de preto, como uma máscara. Embora Rodolfo estivesse a par de dados empíricos similares, cuja única qualidade formidável era sua capacidade para se tornar perfeitamente comuns e generalizáveis, algo naquele aluvião de detalhes - nas dobras se alternando embaixo das nádegas, na passagem de ônibus que sobressaía do bolso traseiro - foi percebido como sobrenatural. Algo implicava um excesso a respeito do que Rodolfo esperava do mundo. Essa passagem entre o conjunto de dados ambientais e sua qualidade pessoal e intransferível de testemunha, sintetizada "nela", propiciou a experiência da decisão em Rodolfo. Seguiu-a pela rua, como se a vigiasse; podia ver que outros também olhavam. No momento em que confirmava nos olhares de outros a existência do elemento em amadurecimento (e, de algum modo, de seu valor), deduziu ser impossível que ela não tivesse notado que a estava seguindo por umas dez quadras pelo menos; mas esse pensamento não tinha importância alguma para a etapa presente (já intuía o programático do processo), e resolveu deixar de pensar. [...]


Texto: POLA OLOIXARAC (Argentina, 33). As Teorias Selvagens (Ed. Benvirá)
Foto: Eduardo Knapp / Folhapress

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

FLORES SÉSSEIS, VIDROS E ÁGUAS: CONSTELAÇÃO DE OSSOS 1. O ENCANTAMENTO PELOS MATERIAIS Vidros e águas se entendem, agarram-se uns aos outros como um pensamento bom atrai outro de sua estirpe, como as pedrinhas de um caleidoscópio fazem umas com as outras, ou seja, abraçam-se e soltam-se num emaranhado nunca igual, mas sempre com o intuito de união, sua sina sendo a de viverem unidas, mantendo a própria identidade – o que é cada vez mais difícil, mais improvável entre os humanos. Águas e vidros: água doce e vidro plano, água salgada e vidro temperado, água suja e vidro opaco, água limpa de bica e vidro colorido  de igrejas e bordéis, sim, de tudo se faz canção e caução, e o coração na curva de um fio d’água estalando gotículas nas costas dos lagartos (agora tu sabes a razão do sorriso do lagarto, uma delas), úvula e cio, nonada , tiros que o senhor ouviu... , o rio cheio de mormaço, espelho d’água é a sensação de um rio calmo calmo calmo, tu vais com ele, entras nele
 mudança * De repente, de modo suave, você se lembra de quando chegou à cidade grande para continuar a estudar, depois veio o Exército, o emprego federal, mochila e violão nas costas, enfim, uma infinidade de erros, de riscos e risos, o amor que rói os tigres, de acordo com um livro cubano, se não me falha a memória com centenas de livros, se não milhares, sim, de repente, você pensa nas pessoas mudando de casa e de cidade, de postura perante a vida (uma luta difícil); quando se muda de casa, vai com a gente uma dupla sensação: de alívio, e de peso pelo que se viveu, a visão a partir da janela, tiques de vizinhos, uma praça e uma pessoa amiga com a qual foi possível conversa de gente grande. Neste momento, pessoas estão carregando ou descarregando móveis, apreensão e entusiasmo, que a vida é breve. *** Darlan M Cunha    

calmaria

  Uma calmaria aparente dentro da aldeia, sobre ela uma zanga de nuvens - mas não se deve levar nuvens a sério, por inconstantes - sina - e levianas feito dunas e seixos escorrendo e escorregando daqui pra lá, de lá para além-lá, feito gente nos seus melhores e piores dedos, entraves, momentos, encontros e despedidas. Um gotejo aqui e ali, mas outro tipo de gotejo num lugar da casa vai trazendo à cena o verso do português Eugênio de Andrade (Prêmio Camões 2001), decifrando a lágrima: " a breve arquitetura do choro ." Darlan M Cunha