Pular para o conteúdo principal
Sancho Panza y Don Quijote



O CASO DE UM CRONISTA ACOSSADO POR PESADELO QUE DEPOIS VIROU SONHO, E QUE INSISTE EM SE TRANFORMAR EM REALIDADE.


1.
Durante certo tempo, sem que percebesse tal inclinação, ele teve consigo posturas de Don Quijote, ou seja, era dado a excentricidades ou delírios ou visões típicas de quem não cabe dentro de si, para quem a praça da aldeia é curta demais para tantos anseios malditos e até benditos a lhe corroerem o consciente e o inconsciente, sim, é verdade. Acontece que delirar é algo espinhoso, cala fundo nos outros cada delírio do vizinho, deixando-o sujeito a muitas interpretações geralmente errôneas sobre o seu estado de saúde mental, que foi aliás o que aconteceu com o verdadeiro, glorioso cavaleiro da triste figura, autonomeado Don Quijote de La Mancha.

Finalmente a Infanta tornará em si, e dará as suas brancas mãos por entre as grades ao cavaleiro, o qual as beijará mil e mil vezes, e as banhará de lágrimas.” *

Durante certo tempo ele viu e combateu gigantes que eram tão somente pequenos ecos de sua insanidade pacata, sua volúpia de andar entre desconhecidos, dar de cara com espinhos nunca sonhados, sim, durante certo tempo, de mancha em mancha, viu o sorriso do sol sobre suas feridas de maluco, de bodega em bodega, escorregando palavras quase que totalmente inteligíveis até mesmo ao mais paciente ouvinte, entre canecas de vinho. Don Quijote ele era, arreando o Rocinante, ou desatando as calças para uma eventualidade fisiológica entre umas ramas daquela região árida e sonolenta justamente por sua aridez; mas, não se deve deixar enganar aquele que quer conquistar o mundo para dá-lo a alguma donzela, porque em todo lugar tem gente, e onde há gente há mil perigos, tantos quantos sejam os poros de cada dia. Porém, ele não sabia disso, porque, para o nobre cavaleiro da triste figura, o que importava era a retidão de caráter, atraía-o afastar as pedras no meio do caminho, a mais absoluta falta de monotonia (Dulcinea del Toboso, en el corazon), e por isso seguia derrubando moinhos, e por eles sendo estropiado.

 “e, finalmente, todas aquelas ações que fazem perfeito um varão ilustre, ou pondo-as num só, ou dividindo-as por muitos.” * 

2.
 Também é certo que durante certo tempo ele portou-se sanchescamente, ou seja, viveu mais de acordo com os preceitos resmungativos ou resmungatórios do glorioso gordo, sempre achacado por alguma queixa, ou seja , a sua moléstia preferida: queixas e mais queixas. De vez em quando, algo do seu mau humor sobrava até contra a sua fiel mula, batendo e soprando, beliscando e afagando – assim o Sancho Panza, sempre de sonho com a sua ilha prometida pelo seu amo delirante Quixote. Com dizia este cronista, durante certo tempo ele viveu como que só à espera de sua recompensa, mas já eram tantos os dias de penúria por aqueles malditos campos pelados de coisas boas, mas repletos de desventuras cheias só de equimoses e humilhações, com o vinho escassíssimo, e a dura cama sob oliveiras e vinhedos ressecados, sempre sob o olhar cobiçoso e agourento dos malditos corvos, que o doce gordo sempre se punha a perguntar o que é que fazia naquelas vastidões, longe do seu quintalzinho de pobre diabo, e logo ali os afagos um tanto tristes e de má vontade de sua gorda mulher.

"O caso é que o estômago do pobre Sancho não seria tão melindroso como o do cavaleiro; [...] A este tempo entrou a bebida a fazer o seu efeito, e começou o escudeiro a desaguar-se por ambos os canais com tanta pressa, que a esteira de junco, em que de novo se tinha deitado, e a manta, nunca mais serviram. Suava e tressuava com tais paroxismos e acidentes, que não só ele mas todos pensaram ser aquela a última da sua vida.” *

3.
Esse cronista ressonou sob Alcalá de Henares, o povoado no qual, segundo a maioria (há controvérsias), nasceu o inventor dessa dupla de doces desvairados.

“Despediram-se de todos, e da boa Maritornes, que prometeu rezar um rosário, ainda que pecadora, para que Deus lhes desse boa fortuna em tão trabalhoso e tão cristão negócio, como era o que empreendiam.” *


Texto: Darlan M Cunha 

*: Miguel de Cervantes Saavedra. Don Quixote, vol. I, cap. XLVII, p. 288. / 95 / 158. Trechos extraídos de Clássicos Jackson, vol XIII, e publicados pela eBOOKSBrasil).
 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Tu te lembras, sim... Contos da minha casa - 5 Uma avó de uma amiga minha completou noventa anos – eu disse uma avó porque, afinal, todos temos mais de duas avós -, e as cantigas de sempre logo se fizeram ouvir, devido ao fato de que não há festa de noventa anos todos os dias, todos os meses, sequer todos os anos, não é mesmo, gracinhas e joões ? Embasado nisso, e embasbacado após ver uma linda foto da festa de aniversário 90 de uma avó de uma amiga minha (ufa !), fiz de conta que era comigo, e revi a minha avó, melhor, uma de minhas avós bem aqui ao lado meu, toda liru-liru , empetacadinha, lindinha e ainda e sempre brabinha que só ela. É... falo da minha avó paterna, cuja graça era Senhorinha, isso mesmo, basbaques, este era o nome dela registrado em cartório: Senhorinha Maria de Jesus. Era baixinha, muito brava, mas só de mentirinha, assim com um ar de Dom Casmurro (parte do livro, porque as partes do livro onde entra a tal da Capitu... isso aí, podem deixar de lado,
FLORES SÉSSEIS, VIDROS E ÁGUAS: CONSTELAÇÃO DE OSSOS 1. O ENCANTAMENTO PELOS MATERIAIS Vidros e águas se entendem, agarram-se uns aos outros como um pensamento bom atrai outro de sua estirpe, como as pedrinhas de um caleidoscópio fazem umas com as outras, ou seja, abraçam-se e soltam-se num emaranhado nunca igual, mas sempre com o intuito de união, sua sina sendo a de viverem unidas, mantendo a própria identidade – o que é cada vez mais difícil, mais improvável entre os humanos. Águas e vidros: água doce e vidro plano, água salgada e vidro temperado, água suja e vidro opaco, água limpa de bica e vidro colorido  de igrejas e bordéis, sim, de tudo se faz canção e caução, e o coração na curva de um fio d’água estalando gotículas nas costas dos lagartos (agora tu sabes a razão do sorriso do lagarto, uma delas), úvula e cio, nonada , tiros que o senhor ouviu... , o rio cheio de mormaço, espelho d’água é a sensação de um rio calmo calmo calmo, tu vais com ele, entras nele

calmaria

  Uma calmaria aparente dentro da aldeia, sobre ela uma zanga de nuvens - mas não se deve levar nuvens a sério, por inconstantes - sina - e levianas feito dunas e seixos escorrendo e escorregando daqui pra lá, de lá para além-lá, feito gente nos seus melhores e piores dedos, entraves, momentos, encontros e despedidas. Um gotejo aqui e ali, mas outro tipo de gotejo num lugar da casa vai trazendo à cena o verso do português Eugênio de Andrade (Prêmio Camões 2001), decifrando a lágrima: " a breve arquitetura do choro ." Darlan M Cunha