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Arthur Bispo do Rosário (1911-89) - 84,0 x 55,4cm Rio abaixo o sorriso escorrega feito uma longa caudal dentro de outra, cada vez mais avassaladora. Claro que o rio não passará em branco pelas inúmeras aldeias que ele visita, e que em seu bojo leva sempre o que há de bom e de ruim no mundo: o riso franco de alguém,   mas as feridas antigas e novas não turvarão a descida dele até o mar, mesmo que outro redemoinho funesto se faça nestas duas caudais viajando abraçadas: o rio e o risco. Poema: Darlan M Cunha
Maria Torres (Tumblr)      Escuta bem o tempo, como se os alarmes estivessem entre algodão, à maneira como se faz com joias, cristais, tesouros de família, objetos exigindo devoção, sufocados, sem direito à respiração pausada. Não, certos ares são impossíveis de se dar às relíquias familiares, e muito menos aos ícones sociais, à pena imposta pelo olhar social. É de se admirar então que depois de tantas curvas, subidas e descidas, espasmos dados pelo cotidiano, até talvez um dia a criatura chegar às pontes de safena, o coração resista, e até nos induza a ir mais longe, desprezando a fala desiludida de que trabalhar cansa, crente que o ócio também tem seus encantos. Sim, eis a matéria da qual é feito o cotidiano: dualidades. Assim, é preciso ter como certo que mesmo quando arrancado o coração pode sobreviver. Texto: Darlan M Cunha Arte: Maria Torres
Taueret - deusa egípcia da fertilidade Amarra a esse tronco invisível o teu medo, cobre com honra a tua infâmia, mede cada côvado de terra com os tremores dos teus membros, mas nunca te esqueças    da grande caudal que só Eu sou. poema: Darlan M Cunha
S. L. Lowry (1887-1976, Inglaterra) aprendiz e mestre unidos e separados por uma fonte de dúvidas haikai // haiku: Darlan M Cunha *
                                                                          Alice Shintani - quimera 2007 Quando o primeiro homem sem cabeça apareceu, não houve quem pudesse crer em mais nada, e durante muito tempo as coisas ficaram tão confusas na aldeia, que nem mesmo as crianças - em geral sábias - souberam como utilizar o tempo e o espaço, ou otimizá-los, ou compartilhá-los, segundo a linguagem do momento . Ora, homem sem cabeça é algo tão antigo quanto a água, de tal sorte que muito antes da invenção de deus e do diabo, pelos espertos das torás e suratas da vida, e afins, o famigerado homem sem cabeça já vagava sem maiores percalços pela amplidão do mundo - falésias, furnas, mesetas, istmos, ilhas e pauís ou pântanos. Sim, ele já se estrepava nos cactos, trocava rumos e urros com a caça e a pesca, até que chegou o tempo a partir do qual, premido por instâncias que nem a neurologia, a genética, a antropologia, a sociologia, a arqueologia e muito menos a psicanálise
  Tikashi Fukushima - Montanha, 1992 Montanha Pegar de leve nas mãos da montanha, coçar-lhe a nuca e os pés, até que as queixas mais breves desapareçam  em meio ao que as nuvens (sempre imprevisíveis) despejem ou não sobre ela e sobre os que abaixo dela choram por não terem colhido os frutos da estação. Poema: Darlan M Cunha
Tomie Ohtake  - Influxo das formas Quando a boca se cala ninguém pode ir em seu socorro, dementes todos diante da boca sem fala. Eis a boca no seu turno de silêncio, com ou sem anuência geral, filtrou o impossível, bem ou mal nos reptos da rua, pilhou pares em pleno fel, foi   lua e limpou o rés do chão de alheia festa, que a boca é isso: se se gaba demais é indigesta; se não diz nada cai no esquecimento, dando   de compor para a ausência (sentida por alguns, talvez) uma  vírgula ou petição; enfim, o mais que perfeito  chiaroscuro  de sua intenção. poema: Darlan M Cunha Imagem : https://br.images.search.yahoo.com/search/images;_ylt=A0LEV2qs.khUL.oAF4_z6Qt.;_ylu=X3oDMTB1MGJ1ODhjBHNlYwNzYwRjb2xvA2JmMQR2dGlkA01TWUJSMDNfMQ--?_adv_prop=image&fr=mcafee&va=tomie+ohtake
    Afonso Almeida - pintor naïf. Bahia, Brasil. Pedras & atabaques Daqui até ali é uma instância de luz única, mas nada se compara  à pedra em sua tristeza de matéria polida para a sanha de um dedo. Lá vai a pedra, sem reino, ânsia de sobrevida, mesmo num balcão de penhores, também ele polido. Lá vai, embrulhada em remorsos e vergonha, a senhora, dores pela pedra penhorada. Pelo sim pelo não, distâncias desconhecidas há neste mundo de pedras e pão enquanto couros são esticados e atabaques infletem sobre o areal que um dia foi pedra nua, pedra que foi atabaque  de tiranossauros e hoje vestígio do que o tempo insinua. Texto: Darlan M Cunha Arte: Afonso Almeida - pintor naïf, BA, Brasil
                Pawel Kuczynski (Polônia, 1976 - )        Quando era mais garoto do que ainda sou, nunca gostei de prender passarinhos - só gostava mesmo era de matá-los, pegá-los em armadilhas e praticar anatomia. A gente vai crescendo, mas nunca muda de todo, ou seja, sempre terá as mesmas taras, fobias, desejos inconfessados, y otras cositas mas.        Aqueles e aquelas que ainda não matei, não perdem por esperar - embora eu seja reconhecidamente um bom garoto. Sem religião, per favore. Texto: Darlan M Cunha
Pawel Kuczynski (Polônia, 1976 - )        Ganhar a vida é o mais antigo refrão - parte terra, parte água -, mas o ar exigido para se dizer tal frase monumental é pouco, o suficiente para abrir os olhos de todos, pelo menos os olhos e os ouvidos de quem tenha ou queira ter tino sagaz. Ou nada de bom virá. Os fenícios, os persas, os nabateus, enfim, povos de fato muito antigos, com certeza tinham essa mesma percepção, embora para chegar a ela usassem de métodos já idos, ou não. Meu vizinho à esquerda me diz que nada mudou, no que diz respeito a isso, ou seja, a exigência do meio sobre o homem não mudou, o que mudou foram os métodos a serem usados, devido às novas invenções, às novas necessidades criadas, ou seja, todo mundo percebe isto. A Natureza parece dizer constantemente: Precisas de mim, escavar será a tua graça, teu dom maior e irremissível seja a inquietude . E assim o Homem se soube um tipo que exigiria mundos e fundos de si mesmo, larga e sangrenta trajetória até sentir
    Pawel Kuczynski (Polônia)        Desde que mudou-se para a casa ao lado, mantém-se ocupado em transcrições, ensaios atrás de ensaios, de tal modo que mesmo os mais desajustados tiveram que ajustar-se às filigranas de um teclado bem tocado, é verdade, mas nada sutil para com os horários alheios, seu humor. Até que alguém na mercearia e bar - um lugar de ajustes de conta da aldeia -, disse que seria pior se rente à casa na qual nascera, naquela rua, um trompetista viesse para ficar, com escritura e partituras. Então, ouvindo isto, todos se lembraram do ditado popular que diz "dos males, o menor". Texto: Darlan M Cunha