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                                                                        Alice Shintani - quimera 2007



Quando o primeiro homem sem cabeça apareceu, não houve quem pudesse crer em mais nada, e durante muito tempo as coisas ficaram tão confusas na aldeia, que nem mesmo as crianças - em geral sábias - souberam como utilizar o tempo e o espaço, ou otimizá-los, ou compartilhá-los, segundo a linguagem do momento.

Ora, homem sem cabeça é algo tão antigo quanto a água, de tal sorte que muito antes da invenção de deus e do diabo, pelos espertos das torás e suratas da vida, e afins, o famigerado homem sem cabeça já vagava sem maiores percalços pela amplidão do mundo - falésias, furnas, mesetas, istmos, ilhas e pauís ou pântanos. Sim, ele já se estrepava nos cactos, trocava rumos e urros com a caça e a pesca, até que chegou o tempo a partir do qual, premido por instâncias que nem a neurologia, a genética, a antropologia, a sociologia, a arqueologia e muito menos a psicanálise deram conta de explicar a mutação que a partir daquele distante então começou a atuar sobre ele e o ambiente.

Do resto da história, até as crianças sabem e riem - já retornadas à natural sapiência. Ontem, quem esteve aqui, e jantou um módico repasto, mas pouco falou, foi Xerazade.


Texto: Darlan M Cunha




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