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Maria Torres (Tumblr)      Escuta bem o tempo, como se os alarmes estivessem entre algodão, à maneira como se faz com joias, cristais, tesouros de família, objetos exigindo devoção, sufocados, sem direito à respiração pausada. Não, certos ares são impossíveis de se dar às relíquias familiares, e muito menos aos ícones sociais, à pena imposta pelo olhar social. É de se admirar então que depois de tantas curvas, subidas e descidas, espasmos dados pelo cotidiano, até talvez um dia a criatura chegar às pontes de safena, o coração resista, e até nos induza a ir mais longe, desprezando a fala desiludida de que trabalhar cansa, crente que o ócio também tem seus encantos. Sim, eis a matéria da qual é feito o cotidiano: dualidades. Assim, é preciso ter como certo que mesmo quando arrancado o coração pode sobreviver. Texto: Darlan M Cunha Arte: Maria Torres
                                                                          Alice Shintani - quimera 2007 Quando o primeiro homem sem cabeça apareceu, não houve quem pudesse crer em mais nada, e durante muito tempo as coisas ficaram tão confusas na aldeia, que nem mesmo as crianças - em geral sábias - souberam como utilizar o tempo e o espaço, ou otimizá-los, ou compartilhá-los, segundo a linguagem do momento . Ora, homem sem cabeça é algo tão antigo quanto a água, de tal sorte que muito antes da invenção de deus e do diabo, pelos espertos das torás e suratas da vida, e afins, o famigerado homem sem cabeça já vagava sem maiores percalços pela amplidão do mundo - falésias, furnas, mesetas, istmos, ilhas e pauís ou pântanos. Sim, ele já se estrepava nos cactos, trocava rumos e urros com a caça e a pesca, até que chegou o tempo a partir do qual, premido por instâncias que nem a neurologia, a genética, a antropologia, a sociologia, a arqueologia e muito menos a psicanálise
Pawel Kuczynski (Polônia, 1976 - )        Ganhar a vida é o mais antigo refrão - parte terra, parte água -, mas o ar exigido para se dizer tal frase monumental é pouco, o suficiente para abrir os olhos de todos, pelo menos os olhos e os ouvidos de quem tenha ou queira ter tino sagaz. Ou nada de bom virá. Os fenícios, os persas, os nabateus, enfim, povos de fato muito antigos, com certeza tinham essa mesma percepção, embora para chegar a ela usassem de métodos já idos, ou não. Meu vizinho à esquerda me diz que nada mudou, no que diz respeito a isso, ou seja, a exigência do meio sobre o homem não mudou, o que mudou foram os métodos a serem usados, devido às novas invenções, às novas necessidades criadas, ou seja, todo mundo percebe isto. A Natureza parece dizer constantemente: Precisas de mim, escavar será a tua graça, teu dom maior e irremissível seja a inquietude . E assim o Homem se soube um tipo que exigiria mundos e fundos de si mesmo, larga e sangrenta trajetória até sentir
    Pawel Kuczynski (Polônia)        Desde que mudou-se para a casa ao lado, mantém-se ocupado em transcrições, ensaios atrás de ensaios, de tal modo que mesmo os mais desajustados tiveram que ajustar-se às filigranas de um teclado bem tocado, é verdade, mas nada sutil para com os horários alheios, seu humor. Até que alguém na mercearia e bar - um lugar de ajustes de conta da aldeia -, disse que seria pior se rente à casa na qual nascera, naquela rua, um trompetista viesse para ficar, com escritura e partituras. Então, ouvindo isto, todos se lembraram do ditado popular que diz "dos males, o menor". Texto: Darlan M Cunha
by Pawel Kuczynski        É um fato a dependência dos filhos, seu longo caminho até a idade adulta práticamente não encontra paralelo noutros animais. O que há, ou parece haver, é que cresce cada vez mais o estranhamento ao conceito família, destruída por uma série de vetores que construíram a sociedade atual, que tanto dá quanto cerra portas num átimo. Ter é o verbo, e a pressa substituiu todos os altares, todos os deuses e deusas jogados num canto qualquer, formigas e teias de aranha em suas bocas, pois a pressa é a sina – nada acontece sem ela, sem o aval dela. E assim as pessoas enlouquecem, sorrindo, dirigindo e falando ao telefone, o ajudante cabal da pressa, esta, sim, a suprema corte social. A família, jogada numa gaveta, membros fraturados, dá seus penúltimos estertores. Penúltimos. Texto: Darlan M Cunha
         Não disse nada durante o estupor geral diante das chamas, não arredou o pé do lugar de onde assistia o ocaso de uma era ruindo sem sal, açúcar, água e óleo, até porque nada mais era compartilhado naquela casa; não eram ingredientes comuns à mesa de quantos lá viveram o tempo necessário para se desconhecerem por completo, sim, em tudo isso e em algo mais aquela pessoa pensava, de pé dentro dela mesma, muda, enquanto o fogo se cumpria mais alto do que o estupor geral, ambos - fogo e criatura - alheios a algum escárnio grosseiro, aos ventos da pressa imobiliária, às cantilenas judiciais.                   Não disse nada enquanto o fogo torneava as pernas do espanto, e nem mesmo depois de silenciadas as últimas brasas, varridas as cinzas, e de delimitados o espaço pertencente à família, e o espaço do passeio público. Só ele sabia quantos foram mortos lá dentro.           Texto: Darlan M Cunha Imagem / Arte: fiammata di flamenco # fire
Tenho um amigo e vizinho de nome Anatanael, cuja insônia não o deixa em paz, sendo ainda mais teimosa do que a de outros, tanto assim que todos os dias por volta das duas da manhã ele vai chamar o padeiro Mocréia, sim, acredite se puder, ele vai chamar o padeiro da pequena cidade, e os dois vão caminhando e jogando conversa fora, através dos poucos quarteirões até a padaria. Ele faz isso todos os dias, menos naqueles em que a ressaca passa dos limites, ou nos quais ele vai até ali perto, ou seja, vai até Belo Horizonte, e fica por lá um dia, mas não dois, na cidade de cujos moradores ele diz “pobres coitados, ardem de febre pela pressa." Texto: Darlan M Cunha Foto: Argentinian Burkation : http://argentinianburkation.tumblr.com/image/66483202715
     Ainda hoje ele diz não ter cometido o ato do qual muitos o acusam, não todos, e assim ele se agarra ao que rediz, certo de que nenhum morador de vereda, sertão, caatinga, restinga, istmo, ilha, pântano ou floresta, ou da metodologia urbana, sujeita a vidro-cegueira, asfalto-surdez e concreto, poderá provar ter praticado o ato que o colocou em evidência judicial, que o colocou no escuro, no ostracismo (palavra antiga exalando conceito sempre revigorado essa palavra é). Há quem veja e ouça o que inexiste, e faz com que acreditem nisso outras pessoas; mas que tipo de crime pode ou não pode, deve ou não deve cometer uma criatura que maneja um livro, que entra e/ou sai pela boca de sua ótica, do conceito de vida que ali naquelas páginas está ? O que pode gente que lê, senão identificar certas poeiras, micoses, razias, a letargia de certos psiquismos, e assim evitá-las ? Basta? Texto: Darlan M Cunha Arte: Brigadefoice , para o Jornal Rascunho.