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SAPATOS VERMELHOS



Quando eu era adolescente, novos sapatos
mereciam batismo dos colegas: lama
cuspo ou graxa, mereciam o rito os quedes
ou os sapatos em geral marrons ou pretos.

Mas, será que o filho de Pedro, movido pela
dura cepa da fé, sustendo vontades
que o mundo de deus dá aos seus, nunca
desistido do encargo de ser lavoura arcaica,

enfim, voltará a usar sapatos pretos
em sua finita performance de homem
sustentando cara de divino (indicado que foi, pelos pares),
pernas e mãos sob o peso do reino

do silêncio ? À beira da infância final, talvez
se encontrem os dois pares de sapatos,
dividindo risos sobre a solércia e o desencanto
dos tempos, dívidas entre ratos e gatos

entre sisudos, bolorentos, cúpidos corredores
nas paredes dos quais um par
de sapatos vermelhos chora pesado.

*****

A HISTÓRIA DESTE POEMA:
Hoje, no final da madrugada, ao assistir ao telejornal na TVE,  televisão da Espanha, falando sobre o Vaticano, a voz em off referiu-se óbviamente ao papa, e ele estava calçado com sapatos vermelhos - que é uma das prerrogativas de se ser papa. A voz em off disse "zapatos rojos", e o poema começou imediatamente a saltar de dentro de mim. Pertinente, eivado de alusões, inclusive a algo que era comum quando eu era adolescente, em Santa Bárbara: seguinte: toda vez que um dos colegas ganhava um par de quedes ou de sapatos, era só ir à rua com ele, que o batismo viria imediatamente. Tolices da puberdade, da juventude. A partir disso, fiz a alusão com os sapatos papais, sendo que numa estrofe eu o situo na segunda infância, pelo que pode surgir a oportunidade das duas infâncias dele se encontrarem. Sim, um poema extra, alta poesia, e não tenho pejo de dizer isso. Lá se vai o papa com suas doenças, seus segredos e outras tristezas.


Poema: Darlan M Cunha

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