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Aniversário // Cumpleaños // Birthday // Geburtstag

















DUAS OU TRÊS REMINISCÊNCIAS, NESTE ANIVERSÁRIO


Muito já se escreveu sobre narcose, sendo que sob narcose, evidentemente, muito foi escrito, até porque, de certa forma, todos e todas estão sob domínio do império natural daquilo que induz à deformação disso ou daquilo; mas uma mente em transe também é humana, embora temporáriamente suprahumana. Um índio que tenha consumido muito cauím na festa de sua aldeia (aguardente de mandioca, cuja fermentação acontece após as virgens da aldeia, e só elas, terem mastigado polpa de mandioca, e cuspido de volta numa enorme gamela, onde fica para fermentar), entrando em transe, ele nunca deixará a sua humanidade; sofrerá delírios, espasmos, o diabo, mas respaldado por milhares de anos de sua sociedade.

Lembro-me da sensação maravilhosa que eu tinha, desde lá pelos treze anos, ao abrir e ler livros de antropologia e etnologia, revirar livros dos irmãos Villas Boas, eu caminhava sobre livros sobre o Brasil (lembras do Projeto Rondon ?), livros do Alceu Maynard Araújo, do folclorista Luís da Câmara Cascudo, e os Tristes Trópicos, do Claude Lévy-Strauss - embaralhado com os índios brasileiros, ou seja, só livros enormes e difíceis, livros com o Brasil dentro, dos quais eu, óbviamente, entendia pouco, mas eu era cabeçudo (e cabeludo), e continuei, porque nasci com livros na cachola. E também ficava ouriçado com os livros sobre o Egito e a Mesopotâmia, por exemplo. Voltando ao Brasil, ainda tenho tomos dos cientistas alemães von Spix e von Martius, que aqui estiveram em expedição entre os anos 1817-1820

Depois, sem largar a literatura científica descrita aí atrás, veio-me o interesse pela literatura literária própriamente dita, que correspondeu a que lesse Érico Veríssimo, de quem gosto até hoje do livreto Ana Terra; e fui de ponta cabeça até Policarpo Quaresma, do Lima Barreto, e Vidas Secas, do Graciliano Ramos (a inesquecivel cadela Baleia), até que, anos depois, entrei de sola num livro que um colega meu do IBGE me emprestou, cujo autor eu nunca tinha ouvido falar, sim, um livro traduzido pelo Drummond, de nome Pão, do norueguês Knut Hansum, prêmio nobel. Pura miséria, um pequeno grande livro, hoje esquecido, até mesmo devido aos bilhões de famintos iguais ao do livro. Li Os Vedas, li o Rathsumara, gigantes da literatura hindu. Confúcio. 

Comecei a ler o médico e cientista brasileiro Josué de Castro, que seria, por dois mandatos, presidente da FAO, o órgão da ONU responsável pelo estudo da alimentação mundial, ou da fome mundial, que escreveu Geografia da Fome, O Livro Negro da Fome. Exilado, em 1964, foi para Paris, e o Chico Buarque e o Edu Lobo, ainda muito jovens, andaram com ele pelas ruas de Paris. Perguntem a ambos. Li o grande médico e cientista Professor Silva Mello, que perdeu grande parte de suas anotações científicas num naufrágio, se não me falha a cachola, mas que reescreveu tudo, numa época na qual se podia contar nos dedos quem tinha uma máquina de escrever.

Depois vieram Bleuler, Jung, Freud e, muito mais tarde, por exemplo, o húngaro Ferenc Szasz de A Fabricação da Loucura, e o Michel Foucault de Vigiar e Punir, por exemplo. Filmes de Pier Paolo Pasolini, especialmente o grande e terrível retrato de uma família completa em completa decadência, que o hóspede (Terence Stamp) chegou e comeu todo mundo - algo muito além de sexo, muito além. Akira Kurosawa, Nagisa Oshima, Abbas Kiarostami e Rainer Werner Fassbinder, e não mais que dois ou três, porque sou muito exigente.

Dostoiévski e Rosa. Machado de Assis e Raduan Nassar.

E ainda sobrava tempo para volteios na zona, para jogar sinuca, e o resto não é da conta do padre. Nadar pelado no rio, namorar duas ou três zinhas, ser expulso do Patronato, em Santa Bárbara... hehe, ó vida criminosa. Estudar, viajar de mochila, depois, viajar para estudar, aprendendo umas duas ou três palavras em dois ou três idiomas, briguei de porrada, servi Exército, toquei com meus amigos no famoso Grupo Anonimato, em BH – nós ensaiávamos num lindo e enorme galpão da FAFICH – Faculdade de Ciências Humanas, e por aí vai... hehehe, cantando nossas músicas e outras "da pesada", no tempo da ditadura, nós, muito jovens, mas nada de completamente analfabetos. Passei uns meses lá pras bandas de Campo Grande, MS. Adorei Machu Picchu e La Puerta del Sol, sim, porque Machu Picchu amava demais os mochileiros e as mochileiras que até lá chegavam com grande dificuldade: norueguesas, suecas, alemãs, francesas, canadenses, rapaziada chilena, uruguaia, francesa, alemã, austríaca, uma verdadeira São Paulo, sim, que Babel que nada. Saudades do Trem da Morte, que saía do interior de São Paulo, e ia parar lá na Bolívia, lá pras bandas do fim do mundo, terras do benvirá, terras do sem fim, Santa Cruz de la Sierra, chacoalhando mais do que saia de mulher bêbada na madrugada.  

Que vida a daqueles velhos jovens ! As mães choram, não dormem.

Gosto de música, e toco, quando dá ou quando quero, e não sobrevivo com literatura nem com música, financeiramente falando, mas toco e escrevo. E os vinte e nove anos vividos na região famosa onde nasceram Clube da Esquina, Grupo Giramundo, Sepultura, Skank, Bar do Bolão, entre outros e outras, deram-me mais cabedal, morar na região dos bairros Floresta e Santa Teresa e Horto e Sagrada Família - todos juntinhos. Pois bem, apesar de ter nascido com livro nas mãos, só fui escrever meus primeiros textos por volta dos vinte e nove anos. Na época, minha companheira, a alemã Antje Karin, química, me disse só estar espantada pela demora, porque só por volta dos vinte e nove comecei a escrever algo, sem saber no que iria dar. Acredite se puder.

Hoje, 22 de novembro, cá estamos. Ficarei em casa, bebendo vinho tinto seco e assando um lombo regado a vinho. Quero sossego, estou cansado de tristezas minhas e dos outros, do mundo, mas, acima de tudo, continuo cheio de alegria, até pelas infinitas imbecilidades humanas que me fazem rir e prosseguir. Mal entendidos à parte, que os tenho em boa conta, quero que alguém me conte uma piada, como presente.

Ah, lembro-me sempre dos meus amigos e amigas que já partiram, lembro-me. Estou me lembrando também dos meus amigos Marcos e Délio, doutores pela Ciências Médicas (vou telefonar e, é claro, receber ligações), e da minha amiga, Dona Joana, lá de Juiz de Fora (em idade avançada, mas tão lúcida quantos netas e bisnetas, netos e bisnetos), etc.

Obrigado por tudo. Por enquanto, ainda faço aniversário, e não adversário. Se você deixar de rir, você está morto, morta – mas não rir apenas para tentar escapar da realidade, porque isso poderá até vigorar por duas ou três horas, mas os demônios voltarão, mais fortes voltarão.

Gracias a la vida, que me ha dado tanto.


DARLAN M CUNHA

Comentários

  1. Uau!
    Conheci mais um bucadim do tantão do meu amigo ^^
    Nossa Senhora, eu empobreço sua rica cultura, não é meu amigo?!Hehe
    <:0)

    Espero que tenha escutado muitas piadas no seu dia especial.

    Eu... estou nesse momento -> "Se você deixar de rir, você está morto, morta – mas não rir apenas para tentar escapar da realidade, porque isso poderá até vigorar por duas ou três horas, mas os demônios voltarão, mais fortes voltarão."

    Mais uma vez, FELIZ ANIVERSÁRIO, pra ficar registrado aqui também!
    Você é muito querido por mim.
    Sucesso, felicidade, saúde, paz, realizações.
    Um abraço bem apertado.
    Parabéns pelo blog que está muito cultural, porque lindo sempre foi.
    Até breve...

    ResponderExcluir
  2. Valeu, NANNI, muito obrigado; tenha um fim de semana bem legal.

    Darlan

    ResponderExcluir
  3. ♥ Obrigada :)
    Pra você e sua família também meu amigo.
    Tchau.

    ResponderExcluir

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