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 Pintura sobre papel, by TÂNIA FILIPPO (Rio / Bahia)

1. DEPOIS DA ÁGUA, O ARTESANATO

Depois da água, há outro encantamento que me fascina de modo cabal, desde o meu mais tenro vislumbre das coisas: o artesanato. Isto porque, para mim, (eu só viria a saber disso, de fato, tempos depois, pelos estudos continuados, viagens, pessoas e também pelas imitações de gente que eu conheci), para mim, as paredes das cavernas, onde a primeira arte pictórica encostou-se, ou achou abrigo, achando a tela mais lógica onde estabelecer-se e esperar pelos futuros humanos, são contemporâneas do meu entendimento do que seja a vida, melhor dizendo, do que foram as primeiras passadas humanas, seus dedos rasgados em busca de vegetais, até aprenderem a fazer triângulos de pedra e encaixá-los nalgum tosco e curto, depois longo, pedaço de pau, servindo assim de lança para caçar bichos e para matar invasores. Sim, os primeiros tempos foram tenebrosos, iguaizinhos ao de hoje, esse tempo no qual procuramos bolhas de ar para respirar. Logo logo o oxigênio será vendido em garrafas, em macromercados hiperfortalecidos, cada uma com o preço de um dia a mais de vida; é claro que os dias terão apenas 12 horas, e, é claro, a cada dia, menos gente, cada vez menos pessoas, criaturas ou sei lá como nos chamaremos, poderão comprá-las.

VER, ENTRE AS PERNAS DO LODO, O SEXO DA AMARGURA E O OLHAR DA MORTE. PROCURAR, ATÉ NA TEZ DO ÓDIO, OS TRAÇOS DE UM AINDA DESCONHECIDO PAVOR: A ALEGRIA GENUÍNA, NUNCA SABIDA.

2. PINTURA ABSTRATA

A pintura abstrata me atrai, porque gosto do que não expressa, do que quer ou pensa expressar, mas gosto, sobretudo, é do espaço que em geral há em trabalhos como, por exemplo, os da Tomie Ohtake e do Manabu Mabe, e, ainda noutra vertente, os da Maria Helena Andrés, embora estes sejam de outra vertente, a qual os entendidos talvez chamem disso e daquilo, de figurativa, etc. Aprecio as telas dela, seu azul bem macio feito a crosta de lã da bunda de um nenén; mas não me falem na velharia, no arcaísmo besta europeu. Tolices. Melhor é ir às gordas e gordos do Fernando Botero (ali está mais do que uma simples visualização de pessoas rombudas. Com algum esforço, tu podes perceber naquelas imensas esculturas de escuro metal, espalhadas em praças do mundo, um estilo de probidade moral, mas sem moralismo, sem Moral & Ética herdadas dos antigos gregos (Sócrates e a mulher dele, Xantipa, tinham escravos; era normal que todos, e aí também os filósofos e legisladores – defensores de todas, ou quase todas, as liberdades – tivessem escravos). Pois bem. Escolas substistem para serem buriladas, e algo dos gregos a turba de língua alemã (a escrita) burilou, ou seja, tolices judaico-cristãs, picuinhas kantianas, hegelianas, desembocando nalgum bando esfarrapado de mirabolantes provadores de haxixe com vinho, de cogumelos com anis, etc, ou seja, sartrianos da vida e outros cocoricós. Pois bem, gente quase boa, em frente.

3. O ARTESANATO É UMA MESA FARTA

Fico encantado com os frutos das mãos das artesãs, reconhecíveis a uma distância enorme, sofrendo elas sempre algum enquadramento dado por meros “filisteus das artes”, “experts em punhetas mentais”, “mestres do acalanto pictórico”, “chorosos em travesseiros puídos”, “sornas”, pacientes sofrendo de “esclerose múltipla”, quando não daquela patologia que é incompatível com a vida, qual seja, a “displasia ectodérmica anidrótica” (esta última, cito-a aqui em termos figurativos), etc. Agradam-me aquelas figuras tão entranhadas nos artesanatos mundo afora (eu digo em geral, porque aqui não temos camelos, e nos desertos não há capivaras); figuras em barro, madeira, vidro, sabugos, pedra, ou feitas de outros materiais; figuras de cavalos, bois, tropeiros, lavadeiras, galinhas, jumentos, aves e pássaros, padres, vilas inteiras, répteis (eis aí os arquétipos), etc; figuras estilizadas, com vagas ou explícitas alusões a fatos nada corriqueiros entre os seus / suas colegas de arte, alusões feitas por pessoas mais habilidosas, com uma visão mais larga do que a da “aldeia” onde vivem, ou do lugar onde se criaram, tomando, a partir de lá, uma consciência da vida que pode seguí-las por toda a vida, embora recebendo influências, e isto óbviamente reflete-se no seu trabalho. Elementar.

Vi alguns trabalhos de uma pessoa notável, incisiva e, como toda pessoa que se preza, impaciente com os giros tortos do mundo. Ela faz um trabalho muito bom com cabaças, mas não só com cabaças, um trabalho que demonstra uma serenidade alegre (digo isto porque, decerto, observei as cores de fundo dos trabalhos). Ela pinta camisetas, sempre com um mínimo de motivos juntos, o que me parece muito bom, porque numa fruteira lotada você vê todas e não vê nenhuma fruta em particular. Há coqueiro em camiseta, o que te dá tempo de “imaginar” algum lugar só teu, algum lugar onde estiveste, ou desejas estar, e isto, para mim, é sinônimo, embora não único, de um trabalho artístico de boa qualidade: deixar a gente ver, FAZER a gente ver, fazer-nos comer e passar bem, comer e sentirmo-nos mal, mas provar a têmpera dos trabalhos, os temperos daqueles petiscos, daquela comida oferecida em forma de telas a óleo, de cabaças pintadas, de ferro batido, de taquaras, de tricô e croché, de cerâmica, de ossos, etc.

TÂNIA FILIPPO – carioca radicada na terra baiana – é uma das maravilhas de artesãs que há no país; e o sopro de suas mãos vive em muitas casas, a partir de feiras, encontros e festivais dos quais participou. Feira é palavra antiga, quase mágica. Fico espantado quando vou à casa de alguém, num país como o Brasil, e não encontro nem um vestígio, repito: nem um vestígio de artesanto. De livros, já desisti de procurar, e de falar acerca disso. Longa vida às artesãs e artesãos.


DARLAN M CUNHA
*****
Ela é boa fotógrafa, embora amadora.Visitem-na AQUI:

Comentários

  1. Grata, amigo.
    Hoje, pela manhã, passei na Praça da Sé. Um grupo de senhoras arrumavam delicadamente seus artesanatos numa feirinha. Poucas barracas e poucos turistas (na feirinha). Eles estavam nas lojas. Lojas que compram de muitos artesãos espalhados por esse Brasil. Compram por um preço mínimo e vendem pelo máximo.
    Vários argumentos tentam justificar essa cruel desigualdade. Lojas pagam impostos, funcionários e outras despesas. No meu pensamento não justifica colocar mais de 200% na peça.

    Perto de onde moro tem uma loja de artesanato (duas sócias paulistanas). Reconheci pq ambas circulavam na feirinha que participei durante alguns anos. Achavam o preço dos artesanatos (os nossos) caros. Nunca compraram ou colocaram em consignação nossas peças. Um dia resolvi visitar a loja e matei a charada. Sei de onde vem a maioria das peças: de Bichinho. Não quero imaginar o valor que elas pagam por peças tão lindas. Nunca comprei nada lá. Não carece. Tenho amigos que visitam Bichinho e me presenteiam. Domingo ganhei um mimo de lá.

    Aprendemos o valor de dar valor ao nosso trabalho...feito um a um.
    Nas nossas mãos não existe a escala industrial e suas facilidades.

    Vendi muitos artesanatos que fiz. Se voltar a fazer vendo. Algumas pessoas passaram de compradores a amigos.
    E presenteei pessoas que paravam na minha barraquinha, gostavam, perguntavam o preço e não podiam comprar. Diferente de outras que olhavam e já diziam: Vai ter desconto? Se for caro eu não levo.
    Eu respondi delicadamente: é caro.

    Grata por suas palavras e generosidade.

    ResponderExcluir
  2. Muito obrigado, TÂNIA,

    pela visita e pelo comentário, o qual demonstra, sem nenhuma sombra de dúvida, o quanto você entende tanto do mecanismo técnico quanto do mecanismo psicológico que regem a feitura e a comercialização do artesanato do Brasil, no Brasil e no Exterior, em geral, sim, em geral.

    Assim é que quem, porventura, tiver a curiosidade e a felicidade de ler esse teu comentário aprenderá algo a respeito de tão relevante assunto. Eu mesmo aprendi.

    Apareça.
    Darlan M Cunha

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