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ATÍPICAS MEMÓRIAS


Deixem que eu me apresente, e à minha irmã. Eu sou Iço, esta é a minha irmã Issa. Somos de Içada - terra sem fim e mar sem contorno, céu de tantos e deus nenhum.

Não descobri o fogo, o afeto, a insônia de ser pai. Memórias de mim, em sua maior parte, são tristes, céticas, ácidas, coléricas, e o meu medo menor é o de entrar na inenarrável algazarra da morte apenas com o círculo vicioso de filho de algo, de nada, do Nada. Sou biliar. Tornei-me ossudo, ossada, ossama. De um livro, lembro-me de uma frase caótica: o diabo no meio do redemoinho, e poucas outras frases de outros livros, tais como: todos nós somos culpados de tudo, e assim por diante; lembro-me do dia em que o meu pai brigou com um tipo, numa cidade do interior, e o meu irmão tomou a si luvas e facas, aos quinze anos, eu não lutei, não matei ninguém, a não ser eu mesmo, só depois cometi crimes assim, de morte, e lhes direi mais, que não fiquem aí com essa cara de asco, vão todas danarem-se, vão todos pôr na roda o rabo, pois é, granfinas e granfas, o diabo no meio do redemoinho está, sempre estará no seio do remoinho, meu nome é Iço, minha irmã é Issa, somos de ecos nunca preenchidos nem esvaziados, não somos virgens de nada, não pomos as mãos em degraus. Nossa folia é ancha, mas fechada. Se puderem, entendam.

Lembrei-me de um livro com um nome bonito: Andara, Viagem a Andara.* Não vi nada igual. Vi muito, cheirei muita estrada, vazei entranhas de porcos e antas, e nem mais me lembro de outras esquinas, mas de Andara eu me lembro, da viagem à Andara me lembro.


Foto e texto: DARLAN M CUNHA
Viagem a Andara. VICENTE FRANZ CECIM

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