Pular para o conteúdo principal
Ir-se-á logo o tempo dos navios









Contos da minha casa – 10

UM DOMINGO ASSIM DE POUCAS NORMAS


Um jovem casal em frente à minha casa está de mundança. É domingo. Ela chegou hoje cedo, desceu do carro, pegou uns pacotes da padaria logo aqui na rua de trás, o branco avental esvoaçante, o som do carro numa altura diferente do usual em brasileiros e brasileiras: médio.

Escavei palavras ou poemas, bebi mais rubiácea, nervos não há em quem se afasta de gente, para quem há muito tempo deixou de gostar de gente; é claro que com aquelas exceções mínimas, mínimo de qualquer múltiplo é o quanto quer para si quem chega a este patamar, mas

o mundo é grande em sua pequenez, e eis que de certa forma eu me afeiçoei ao casal – mais a ela, do que a ele. E já me lembro de um fim de madrugada, numa segunda-feira, quando vieram aqui pela primeira vez, sendo que acho que nada havia lá no apartamento, e lá ficaram (vantagem de quem descansa as vistas ao ir à janela de quando em vez, sim, aquele cansaço caseiro aviva na gente o sentido da visão. A percepção, embora possa parecer embotada, diluída, leva-te para pequenos detalhes

na rua, para o lado outro e para o além-lá da rua, dos muros de prédios, da rala vegetação de um terreno baldio, das florezinhas nos parapeitos, vultos mornos por trás de vidros e talvez da vida, enfim, uma série de fatores a te armarem para o domingo de macarrão, frango, arroz, feijão, alface, tomate e algum álcool ou o todo poderoso álcoolrão e outros índices de fé que lhes equivalham (tem costeletas de porco aí ?).

Voltando ao casal, coisa triste e alegre é (nunca na mesma medida, mas estas dualidades estão presentes em todas as mudanças de domicílio, em qualquer lugar, em épocas de qualquer pessoa) mudar-se de casa, de bairro, de cidade, de país... quanto à mudança de vida para outra vida, deixo isso para os inúmeros tolos e os inúmeros espertos agindo sobre esses tolos.

Voltando ao casal, sentirei falta deles, embora nunca nos tenhamos dito sequer um bom-dia, mas os vejo amiúde, entrando e saindo em seus carros, e pronto: a hora é esta, o domingo é este, e a saudade fique comigo, entrando de peso no acervo meu cada vez mais distante de gente.

DMC
Belo Horizonte, 30 de setembro de 2007
foto: DMC

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

alto & baixo

Barreiro - BELO HORIZONTE, MG * Todos fogem, querem mudança em sua mesmice, novos degraus com textos e tetos, de um modo ou de outro, sentem que a vida é minuto, frutas murcham depressa, animais logo estão cada vez mais sisudos e mal-humorados, e assim chegam às monstrópoles, às suicidades. * Darlan M Cunha  

calmaria

  Uma calmaria aparente dentro da aldeia, sobre ela uma zanga de nuvens - mas não se deve levar nuvens a sério, por inconstantes - sina - e levianas feito dunas e seixos escorrendo e escorregando daqui pra lá, de lá para além-lá, feito gente nos seus melhores e piores dedos, entraves, momentos, encontros e despedidas. Um gotejo aqui e ali, mas outro tipo de gotejo num lugar da casa vai trazendo à cena o verso do português Eugênio de Andrade (Prêmio Camões 2001), decifrando a lágrima: " a breve arquitetura do choro ." Darlan M Cunha
FLORES SÉSSEIS, VIDROS E ÁGUAS: CONSTELAÇÃO DE OSSOS 1. O ENCANTAMENTO PELOS MATERIAIS Vidros e águas se entendem, agarram-se uns aos outros como um pensamento bom atrai outro de sua estirpe, como as pedrinhas de um caleidoscópio fazem umas com as outras, ou seja, abraçam-se e soltam-se num emaranhado nunca igual, mas sempre com o intuito de união, sua sina sendo a de viverem unidas, mantendo a própria identidade – o que é cada vez mais difícil, mais improvável entre os humanos. Águas e vidros: água doce e vidro plano, água salgada e vidro temperado, água suja e vidro opaco, água limpa de bica e vidro colorido  de igrejas e bordéis, sim, de tudo se faz canção e caução, e o coração na curva de um fio d’água estalando gotículas nas costas dos lagartos (agora tu sabes a razão do sorriso do lagarto, uma delas), úvula e cio, nonada , tiros que o senhor ouviu... , o rio cheio de mormaço, espelho d’água é a sensação de um rio calmo calmo calmo, tu vais com ele, entras n...