Pular para o conteúdo principal







Não consigo escrever ouvindo música, porque nem um fiapo de concentração aparece, pelo que só me resta esquecer dos sustenidos maiores e do ré bemol, enfim, da melodia. Nunca saberei se gostar de literatura me salvou de alguma coisa, e de quê, se de algum caminho de perdição que não este no qual estou, de papo pro ar, embora com uma apreensão em cada poro. Nem mesmo a minha psicanálise me revela nada a respeito disso, pelo que a música, a sensação de ouvir música, é mesmo, para dizer pouco, inextrincável.

É sabido, por muito poucos, que João Cabral não tinha absolutamente nenhum elo ou eco ou afeição pela musa, ela não entrava nos seus enleios, de tal forma que nos trilhões de sinapses do seu cérebro parecia não haver o mínimo teor de reconhecimento para com ela, sim, era completamente cego, surdo, mudo. Realista na poesia, minimal, enveredou por apreciar principalmente a pintura de Joan Miró, capaz de anular outono ou inverno psíquico, plena de alusões no  apelo multicor que nos leva à infância; portanto, telas naturalmente melódicas, levando-nos assim aos arquétipos da humanidade. Extremos se tocam, direis.

A propósito disso, digo que do meu recentemente falecido pai eu nunca ouvi um assobio sequer, severo e retraído que era, emblemático nas conversas com seus demônios – porque todos os temos em maior ou menor número e grau -, embora tivesse nas costas as farras de juventude, nunca o ouvimos solfejar ou assobiar uma canção, que isso decerto lhe era impossível, por contrário à sua índole primária, enfim, por ter sido um dos raros a quem a música diz pouco ou nada; e assim, jamais foi ouvido fazendo alusão a uma canção, nem mesmo diante de uma netinha, atitude frontalmente oposta à da minha mãe, cantadora emérita, álacre que é, cantando sob os muitos fluxos do seu sofrimento.

Um dia, há muito tempo, resolvi que o meu ano novo começaria no dia do meu aniversário, e de certa forma esse pensamento e essa atitude ainda se mantêm comigo, ainda que não na proporção em que melhor seria para mim mantê-los. É sempre assim: estamos fartos de ouvir pessoas dizerem que “esse ano, vou mudar algumas coisas no meu cotidiano”; porém, dois meses depois, nem se lembram mais se ao menos começaram de fato tais mudanças radicais.

É isso aí, garoto, seu ano novo começa hoje - 22 de novembro.


Texto e foto: Darlan M Cunha

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

FLORES SÉSSEIS, VIDROS E ÁGUAS: CONSTELAÇÃO DE OSSOS 1. O ENCANTAMENTO PELOS MATERIAIS Vidros e águas se entendem, agarram-se uns aos outros como um pensamento bom atrai outro de sua estirpe, como as pedrinhas de um caleidoscópio fazem umas com as outras, ou seja, abraçam-se e soltam-se num emaranhado nunca igual, mas sempre com o intuito de união, sua sina sendo a de viverem unidas, mantendo a própria identidade – o que é cada vez mais difícil, mais improvável entre os humanos. Águas e vidros: água doce e vidro plano, água salgada e vidro temperado, água suja e vidro opaco, água limpa de bica e vidro colorido  de igrejas e bordéis, sim, de tudo se faz canção e caução, e o coração na curva de um fio d’água estalando gotículas nas costas dos lagartos (agora tu sabes a razão do sorriso do lagarto, uma delas), úvula e cio, nonada , tiros que o senhor ouviu... , o rio cheio de mormaço, espelho d’água é a sensação de um rio calmo calmo calmo, tu vais com ele, entras nele

calmaria

  Uma calmaria aparente dentro da aldeia, sobre ela uma zanga de nuvens - mas não se deve levar nuvens a sério, por inconstantes - sina - e levianas feito dunas e seixos escorrendo e escorregando daqui pra lá, de lá para além-lá, feito gente nos seus melhores e piores dedos, entraves, momentos, encontros e despedidas. Um gotejo aqui e ali, mas outro tipo de gotejo num lugar da casa vai trazendo à cena o verso do português Eugênio de Andrade (Prêmio Camões 2001), decifrando a lágrima: " a breve arquitetura do choro ." Darlan M Cunha
 mudança * De repente, de modo suave, você se lembra de quando chegou à cidade grande para continuar a estudar, depois veio o Exército, o emprego federal, mochila e violão nas costas, enfim, uma infinidade de erros, de riscos e risos, o amor que rói os tigres, de acordo com um livro cubano, se não me falha a memória com centenas de livros, se não milhares, sim, de repente, você pensa nas pessoas mudando de casa e de cidade, de postura perante a vida (uma luta difícil); quando se muda de casa, vai com a gente uma dupla sensação: de alívio, e de peso pelo que se viveu, a visão a partir da janela, tiques de vizinhos, uma praça e uma pessoa amiga com a qual foi possível conversa de gente grande. Neste momento, pessoas estão carregando ou descarregando móveis, apreensão e entusiasmo, que a vida é breve. *** Darlan M Cunha