"Eu achava excessivamente arbitrário exprimir os números por sons. Por que, então, não fazer de um a uma amoreira, de um b uma bananeira, de x um ponto de interrogação ?"
Carl Gustav Jung. Memórias, Sonhos, Reflexões
UM TEMPO NA VIDA DE UM PINCEL
Carl Gustav Jung. Memórias, Sonhos, Reflexões
UM TEMPO NA VIDA DE UM PINCEL
Pavão misterioso. Cavalo. Rosto da Árvore.
Uma pessoa me disse
que não se lembra com exatidão onde e nem quando viu um cavalo fechando
com o próprio corpo uma volta de quase 360, feroz e feraz animal todo
desconcertado, podendo-se notar nele um evidente e inadiável desejo de
colocar em prantos limpos (sim, prantos) coisas que o incomodam,
afligem-no como seteiras naquelas muralhas imensas e práticamente inexpugnáveis que tanto
os viajantes comuns quanto os bandoleiros medievais e os de antes deles
encontravam pelo caminho. Ela disse ter sentido este cavalo, lá de dentro do
seu sonho ou pesadelo, notando no olhar feroz do mesmo a mais legítima
inquisição, isso porque o muar parece perguntar taxativamente o que há com o mundo dos cavalos, ainda e sempre sob tutela humana - o
que equivale a dizer que ainda sob o desvairio de contendas constantes e cada vez
mais arrasadoras, gidantescas.
Sonho de Colombo. Vitória. Brincadeira de água. (Manabu Mabe)
E assim o sonhador em
questão percebeu tratar-se de um animal com o qual é pertinente manter um alto
padrão conversacional, ou nada feito, ou ele se recusará a seguir adiante, rumo aos trevos encontráveis numa conversa de
fundo; e por ter percebido a querência do cavalo, deu ao outro motivos
de fala, à raiz da fala dando asas, isso porque homens e cavalos também podem
ser alados.
Abaporu chorando nos traços meus e teus. (Tarsila do Amaral)
Sinto que há no trabalho da artista
plástica potiguar Ângela Felipe uma constância que, para mim, leigo geral, não é de difícil percepção, pois ela
teima na beleza, nesta abstração maior (mas o que fazermos contra o que é humano, ou seja, a sensação de
beleza?), sim, ela sabe muito bem da história da beleza, bem como sabe da
história da feiura. Ela teima, mas com uma serenidade mantida mesmo se lhe
acontece uma eventual dor no punho principal, aquele que faz o vaivém do
artista plástico, mormente os pintores, é verdade, ela segue de leve, o mar por
perto, o amor pode tornar-se distante, fictício, ou talvez nem mesmo existir do
modo como a Humanidade sempre o cortejou, pintando-o com lábios sedentos, olhos
rubros e braços febris; mas, voltemos à essa pintura que não cobra nada para
que as cores se alojem nela, e, mais do que simplesmente um aglomerado de
tonalidades, ali está a vontade consciente de atuar através da arte pictórica. O
trópico cobra pelo seu endereço.
De mim a ira sabe
muito pouco, mormente quando olho Os
Retirantes, ou Os Comedores de
Batatas. (Portinari. Van Gogh)
Os temas dela são
sempre de me fazerem lembrar caleidoscópio, nunca o ouro de tolo, eles me fazem
lembrar é de algo perdido, ou nunca encontrado, e vem daí a grande classe de
sua técnica: deixa algo no ar, embora numa primeira mirada se possa dizer que ah, isso é isso, isso é aquilo, ela quis dar
tal recado com essa pincelada, etc. Ledo engano. É pouco um jeito assim de
avaliar tal trabalho. As crianças brincam de tal forma a se esquecerem até de comer,
quando estão entre pedrinhas multicores, e eu me perco em divagações de leigo, mas
sentindo os excelentes temperos de uma tela. Eu já disse que um escritor só
escreve um livro, mesmo tendo escrito vários - ele apenas prossegue por trilhas
diferentes, com assuntos díspares e até mesmo antagônicos, mas sempre um livro só,
de dentro do qual ele procura renovar-se, e é assim que eu sinto
a exuberância dessa pintura sempre diversificada em seus símbolos, cuja
nomenclatura é leal ao mais antigo dos pilares da vida, e que ainda é, ou deveria ser, o maior patrimônio ou princípio da Humanidade, ou seja:
a comunhão de bens, uma comunhão que, no caso da artista Ângela Felipe, vem e vai através da
pintura.
Mulher de bicicleta. Ciclistas. A idiota. (Iberê Camargo)
Sim, eu também vi um
cavalo mordendo o próprio rabo, simbólicamente, ao mesmo tempo limpando de si
os intentos menores do mundo.
2.
A sociedade está
sujeita cada vez mais a chaves, senhas, que o automóvel é lei no inconsciente,
sinonímia de poder, e as pessoas, bem entradas ou não em anos, usam tênis e
camiseta. E aqui também o tino florido da artista pinta num simples tecido de
algodão jardins ou caatinga, sim, jardim com flores que mais se parecem com grandes
redemoinhos (blusa de Jacqueline), cada camiseta ou blusa gritando ou cantando
ao seu modo, sem gêmeas, parece-nos. De uma cena da caatinga, através de sua
arte num simples tecido de algodão, ela é tão capaz de nos fazer ouvir os
mandacarus quanto a cantoria de um homem montado num jegue ou indo a pé para o
fim do mundo, bebendo sol.
Texto: Darlan M Cunha
Tela: Ângela Felipe. Título: Cavalo
Grata meu amigo, pela belezura que consegue ver em meu trabalho. A exposição promete!
ResponderExcluirDesde que a conheci, faço parte do fã-clube desta moça... Sempre inspirada, encantando nosso olhar e provocando mil viagens... Que bacana, sua abordagem do trabalho da Ângela! As sensações relatadas remetem mesmo ao que sinto quando vejo as obras dela. Parabéns aos dois!
ResponderExcluir