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Contos da minha casa - 3
EMPATIA SEDIMENTADA PELO COSTUME, À FORÇA OU POR INSTINTO ?


Há muitos anos ela os acompanha com a maciez de seus passos, guiada pelos odores e o arrazoado da família. Estrela da vida inteira, estende-se nos lugares eleitos, e já nem dramatiza mais outra entrada elétrica de algum intruso ou vizinha, ou seja, fica na dela, embora antes concedesse a si mesma latidos assim meio desaforados aos incautos e às intrometidinhas.

Diz-se que o tempo não se cansa, que ir é o melhor remédio – sim, eu disse ir . Embasado nisso, recolho fragmentos dela ainda nova, serelepe e quase tão estridente quanto papagaios nalgum quintal, ou putas na chuva, roubadas na madrugada (Caramba, que parâmetro fostes arranjar, criatura, para dizer algo assim acerca de uma cachorrinha poodle !).

Pois é, quem não tem vaca, que se safe de algumas de suas difíceis injunções psicológicas com bicho outro qualquer. No caso desta família, coube-lhe o vezo ou a sorte ou ainda o acervo que com ela se criou, em benefício de ambos os lados, e de outros também (pois não disse ainda há pouco que a vizinhança se esbalda em afofar-lhe os dias ?).

Chegam de manso estas criaturas, e se deixam estar à mercê de suas donas e donos, embora sabido seja que não raro vivem ao léu, mesmo tendo um lar onde criar raízes e, não raro, tronco familiar próprio. Mas não foi o caso desta cachorra da qual se fala aqui, cujo tempo já se esgota.

São quase 15 anos de convívio, e sua verve naturalmente decaiu, sua força já não vence tantos degraus, e a pelagem decerto já não tem o viço de ontem ou de trasanteontem. Aconteceu assim num vu, de modo quase imperceptível. Na conceituada observação de quem de direito, a medicação continuada parece que acelerou nela aquilo que bem a poderia colocar entre as personagens do Ensaio Sobre A Cegueira. A audição está muito comprometida. E o faro. Foi acelerado o processo. Passeia pela casa que bem conhece, roçando a cabeça nos portais e sofás, nas camas, nas pernas da mesa que sustenta a tevê, nas pernas de seus donos...

e, como era de se esperar, agora só atravessa as suas ruas se carregam-na no colo. Sim, completamente cega , mas sorrindo ainda, aquela que é algodão para todos. Se morre, morrerão também seus parentes. Chama-se Kika.
***


(Uma vizinha contou que quando moravam em Ipatinga, apareceu-lhes uma gata. Sempre um petisco e outro davam-lhe, mas sem lhes dar atenção maior, até por não saberem de onde viera, a quem pertencia. Certo dia, quando lá estavam em seus trabalhos de rotina, ouviram insistentes arranhados na porta, algo de irritar ou meter medo: ao abrirem, a gata entrou de chofre, deitou-se e morreu. Alguns dias antes, dera a luz à uma ninhada. Nunca souberam o que levou a gata a estabelecer com eles tal empatia).

Comentários

  1. Tadinha da Kika!
    Ver os nossos bichinhos envelhecer assim, não é fácil, qto mais qdo chega a hora deles partirem. Fica um buraco na gente.
    Impresssionante a história da gata.

    um afago na Kika
    Zana

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  2. Sim, darei.
    Essa contrapartida - a de ter de se desacostumar de um pássaro, de um animal - é pesada.

    Um abraço. Obrigado.

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